segunda-feira, 7 de junho de 2010

A FELICIDADE EXISTE?



Freud, a psicanálise e a felicidade

Das clássicas proposições filosóficas aos atuais manuais de auto-ajuda, passando pelos trabalhos científicos e as construções utópico-ideológicas predominantes no século 20, a verdade é que o ser humano ainda não conseguiu dar uma resposta definitiva e satisfatória sobre o que é ser feliz e como conseguir sê-lo.

A psicanálise que, junto com Freud, é reconhecida como um saber teórico, uma técnica de interpretação e uma clínica psicanalítica, voltada para diminuir o sofrimento humano, é cética quanto ao sujeito humano ser feliz. O próprio Freud teria dito que a psicanálise até pode resolver os problemas da miséria neurótica, mas ela nada pode fazer contra as misérias da vida como ela é.

Ainda, segundo Freud, não sendo a psicanálise uma “cosmovisão”, uma construção intelectual que visa solucionar todos os problemas de nossa conturbada existência, com base em uma hipótese filosófica ou supostamente científica universal, é praticamente impossível conceber um ser humano plenamente feliz.

Herdeira do estilo socrático porque ousa buscar, mas nada conclui, a psicanálise sustenta o compromisso de, por um lado, não deixar nenhuma pergunta sem resposta acredita ter encontrado a chave para explicar e resolver todos os males da humanidade, por meio do indivíduo, do grupo ou da coletividade.

A teoria psicanalítica e a felicidade

Para entender a relação psicanálise e felicidade, precisamos resgatar alguns de seus conceitos e categorias. O primeiro deles é o desejo. O desejo é humano, demasiadamente humano. O desejo tal como é entendido pela psicanálise, não é a mesma coisa que a necessidade. Enquanto a necessidade é um conceito biológico, natural, implica uma tensão interna que impele o organismo numa determinada direção no sentido de busca de redução dessa tensão ou satisfação, logo, a autoconservação (ex: necessidade de fome, então buscamos comida), o desejo, sendo de ordem puramente psíquica, é desnaturado e como tal pertence à ordem simbólica. Enquanto a necessidade é biológica, instintiva e busca objetos específicos (comida, água, etc.) para reduzir a tensão interna do organismo, o desejo não implica uma relação com esses objetos concretos, mas sim, com o fantasma ou fantasia. Ou seja, “o fantasma é, ao mesmo tempo, efeito do desejo arcaico inconsciente e matriz dos desejos atuais, conscientes e inconscientes”.
Diferente dos animais, no mundo demasiadamente humano, as necessidades são atravessadas pelo fenômeno da linguagem, porta-voz das demandas. A criança pede à mãe que lhe dê o objeto de sua necessidade para ela eliminar sua “falta”. Só que a demanda é sempre demanda por outra coisa, funcionando como pretexto para conseguir "algo" de que o sujeito sente falta e que pressupõe que o outro disponha a fornecê-lo, ou seja, reconhecimento e amor. Portanto, não somente existe nela (criança ou adulto) a necessidade do objeto "alimento x", mas, sobretudo sempre existe uma "demanda para ser reconhecida e amada". No fundo, queremos ser preenchidos, plenos, ou seja, almejamos uma impossibilidade. Porque, a demanda é a solicitação de uma presença ou de uma ausência, e é sempre dirigida ao Outro, como um pedido de amor e uma expectativa de preenchimento absoluto, de fusão das almas, de plenitude.

A demanda e o desejo fazem aparecer outro registro da falta . Acontece que, a satisfação do desejo é sempre adiada e nunca atingida, portanto, no fundo, o desejo busca o impossível. Restando-lhe sempre a satisfação, o desejo se vê obrigado a buscar outro caminho, a realização. Através de meios-objetos como a fantasia do seio, o sintoma, um beijo, o gozo da droga, o gozo do poder político, o gozo do discurso teórico da fé, o gozo do rico que priva o outro de também ter, o gozo de quem imputa sofrimento a outro, etc. Todas essas formas de realização são marcadas por insatisfações primitivas que se atualizam. O sujeito vive em estado de excitação contínua: prazer e desprazer ao mesmo tempo. A pulsão e o desejo nos diferenciam dos animais estes são seres de puro instinto, seres de necessidade. Os seres humanos por serem desejantes, seres de linguagem, são condenados a sentir, primeiro mal-estar e angústia, depois por serem impulsionados para algo que se supõe trazer a felicidade, um estado de completude de não falta.

O que nos sustenta é uma ficção construída e dependente da memória de que um dia fomos para o desejo do Outro primordial (mãe), que nos acolheu em nosso desamparo de recém nato. E neste núcleo de nada, de ter sido o desejo do Outro que nos sustentamos, buscando incessantemente o reconhecimento nos olhares dos outros nossos semelhantes.
Por vezes isso se faz às custas de fazermo-nos sofrer em demasia. “O sofrimento dos neuróticos provém da angústia de não desejar em conformidade com o super-eu” (Nasio, 1993); pois para advir como sujeito, a que renunciar a essa plenitude (de ter sido o tudo para o outro) se adequando em conformidade com as exigências do social.
O desejo, no fundo, sempre procura realizar a nostalgia do objeto perdido, que habita no inconsciente. Então, o objeto não-sabido e recalcado do desejo está condenado a repetir na atualidade o que no passado remoto possivelmente foi prazer e depois virou gozo. Portanto, tal como entende a psicanálise, o desejo implica num desvio ou perversão da ordem natural ou biológica. Deixando de ser instintivos, os humanos se orientam pela ‘ordem’ pulsional e desejante, ou seja, não somos mais movidos pela força instintiva, que é apenas matriz do comportamento dos animais ditos irracionais. Somos seres simbólicos, marcados pela desnaturalização empreendida pela cultura. Somo movidos sempre por ‘outra coisa’. Se fôssemos somente instinto e necessidade, seríamos como os animais, que parecem felizes quando cumprem com seu ciclo biológico de fome e sexo. O animal satisfeito deve ser feliz. Mas, o mesmo não acontece com os seres humanos. Podemos ter ‘tudo’ e ao mesmo tempo sentir vazio existencial; podemos sentir prazer e ao mesmo tempo colher desprazer em nossos atos demasiadamente humanos. Se estivéssemos presos ao instinto, ainda teríamos cio, faríamos sexo somente em determinada época do ano apenas para procriar; comeríamos apenas para matar a fome e não para degustar. Entretanto, a condição humana de ser desejante, cultural, complica a sua conquista para ser feliz, embora possamos eventualmente experimentar alguns momentos de felicidade, como o gozo sexual, o recebimento de uma promoção no trabalho, ganhar um prêmio, ver nascer um filho, etc.
Essa distinção é importante porque, além de distinguir a categorias da “satisfação” e da “realização”, tem importantes conseqüências na condução da clínica psicanalítica, na política e na concepção sobre a construção da civilização. Uma psicoterapia baseada na satisfação das necessidades dos pacientes constitui um grave equívoco, é enganação, e pode abrir caminho para a perversão da relação profissional, chamada por Freud de ‘psicanálise selvagem’. No centro da teoria e da prática psicanalíticas está o desejo, diz Freud. Não é a necessidade, mas o desejo. E, no final de um processo de psicanálise onde estava o ‘isso’ [id] o ‘eu’ [ego] deve advir. Esse princípio tem correspondência no campo político.

É certo que a necessidade quando preenchida leva o sujeito a obter a sensação de satisfação. Mas, não o leva sentir-se feliz. Isto acontece porque “o desejo, jamais é satisfeito" (GARCIA-ROZA: 144). Por que, então, o desejo humano jamais é satisfeito?

Sujeito x felicidade

Para Freud, o desejo é o que põe em movimento o aparelho psíquico e o orienta segundo a percepção do agradável e do desagradável. O desejo nasce da zona erógena do corpo, e sem se reduzir ao corpo (soma) somente pode se satisfazer apenas parcialmente. Como já foi dito, ele realiza-se no movimento de querer-mais-e-mais. Como formula Lacan, "O desejo é sempre o desejo de um outro desejo”.
O desejo jamais é satisfeito porque tem origem e sustentação da falta essencial que habita o ser humano, daquilo que jamais será preenchido e, por isso mesmo o faz sofrer, mas também o impulsiona para buscar realização – ou satisfação parcial – no mundo objetivo ou na sua própria subjetividade (sonhos, artes, projetos utópicos, fé no absoluto, etc.).

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Wilton Branco